Por Carlos Joly
A situação da biodiversidade no Brasil não é nada boa. Criamos Unidades de Conservação, mas não damos a infraestrutura mínima para de fato implantá-las; no assim chamado novo Código Florestal o Congresso aprovou e o STF ratificou uma ampla anistia a quem desmatou ilegalmente por décadas e reduziu as APPs a faixas muito aquém das necessárias para desempenharem seus serviços ecossistêmicos essenciais; não há a menor movimentação em relação a ratificarmos o Protocolo de Nagoya (desde 2012 quando a ratificação foi encaminhada ao Congresso nem sequer a Comissão para discussão do tema foi instalada). Estamos bem na foto?
Estas evidências foram constatadas durante a elaboração do primeiro diagnóstico brasileiro sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos, elaborado pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES). O documento deve ser lançado em novembro de 2018, no período que antecede a 14ª COP de Biodiversidade.
Nos últimos 5 anos participei como representante da América Latina e do Caribe no Painel Multidisciplinar de Especialistas da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). E percebo que podemos ficar dias discutindo se o copo está 1/5 cheio ou 4/5 vazio, enquanto o que restou escoa cada vez mais depressa.
Já em 2005, a Avaliação Ecossistêmica do Milênio tinha “acendido a luz amarela” quanto à saúde dos ecossistemas do planeta. Infelizmente este alerta não foi levado em consideração nas últimas duas décadas e, desde o final do século 20, os problemas só se agravaram.
Vejam o continente americano: crescimento populacional, migrações, mudanças climáticas, modelo de crescimento econômico e fragilidade da governança ambiental, são os principais fatores antropogênicos indiretos, que impactam biodiversidade e serviços ecossistêmicos no continente. O PIB da região cresceu seis vezes desde 1960, o que representou uma melhora na qualidade de vida de milhões de habitantes da região, mas infelizmente, devido ao modelo predatório de crescimento econômico, representou também um aumento desproporcional da conversão e fragmentação de habitats, geralmente para produção não sustentável de commodities para exportação, tais como a soja e a carne.
As três Américas e o Caribe reunidos representam cerca 40% da capacidade mundial de produção de produtos baseados na natureza, que são essenciais para garantir segurança alimentar, hídrica, energética, os serviços de polinização, de regulação climática, bem como serviços não materiais como continuidade cultural e refúgio espiritual. Considerando-se apenas a parte terrestre do continente, o valor destes serviços ecossistêmicos é estimado em R$ 80 trilhões (US$ 24.3 trilhões), o equivalente a todo PIB da região.
Entretanto, tanto a biodiversidade como os serviços ecossistêmicos que dela dependem, estão sob fortíssima pressão. Pelo menos 65% dos serviços estão declinando, enquanto que 21% estão declinando de forma muito acelerada. Cerca de ¼ das 14.000 espécies de grupos taxonômicos bem conhecidos está sob risco de extinção, em maior ou menor grau, tanto em ambientes terrestres, de água doce como marinhos. Dentre as espécies endêmicas a ameaça de extinção pode chegar a 40%, no caso das espécies caribenhas. No continente como um todo, essas perdas já estão afetando os serviços ecossistêmicos associados à provisão e proteção dos recursos hídricos, bem como os associados com a produção de alimentos, inclusive as culturas de subsistência.
Estas constatações foram publicadas no final de março de 2018, após a 6ª Reunião Plenária da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). Na ocasião foram aprovados 4 diagnósticos regionais (o mundo foi dividido em 4 grandes regiões – África, Ásia & Pacífico, Europa & Ásia Central, e Américas) sobre o status quo da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos. Esta plenária do IPBES aprovou também um diagnóstico global sobre o tema degradação e restauração de ambientes. Os resultados destes diagnósticos (todos disponíveis em https://www.ipbes.net/) são absolutamente alarmantes, especialmente no continente americano.
Muito além de jogar pedras, no documento que indica o estado da biodiversidade e serviços ecossistêmicos nas Américas (Relatorio_IPBES6_ Americas) a Academia reuniu, sintetizou e traduziu em linguagem acessível a políticos e tomadores de decisão, opções de caminho e cenários para biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Ou seja, em um esforço fantástico, não só entregou o diagnóstico, mas também as opções de tratamento para sairmos da UTI.
Dada a dimensão continental do Brasil, é absolutamente imprescindível termos análises realistas da situação do país para produzirmos, com um esforço conjunto de todos os segmentos da sociedade – academia, governo, setor privado, ONGs, um diagnóstico acurado da situação e, principalmente, um rol de opções de governança e soluções a curto, médio e longo prazo.
O que a BPBES propõe é sairmos deste maniqueísmo de confronto entre ambientalistas e setores do agronegócio, para soluções negociadas que tirem a legislação ambiental do gueto dos Ministérios convertidos às premissas da CDB para uma discussão ampla com os Ministérios da Área Econômica e da Produção. O que precisamos é de políticas integradas que avaliem a importância econômica dos serviços ecossistêmicos essenciais para o bem estar humano.
Na minha opinião, só mudando o modelo predatório, mantido pelo Brasil desde seu descobrimento, por um modelo de desenvolvimento que tenha a nossa riqueza em biodiversidade e serviços ecossistêmicos como um de seus sustentáculos, conseguiremos, de fato, reverter o quadro de dilapidação deste enorme patrimônio natural. Patrimônio que herdamos das gerações passadas, mas que sem estas mudanças, não legaremos às gerações futuras. Aí finalmente, estaremos bem na foto.
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* O artigo é um contraponto à entrevista de Bráulio Dias ao Estadão em 22/05/2018.