Rio de Janeiro, 23 de novembro de 2023 – O Brasil possui uma extensão litorânea superior a 10 mil
km, o que o qualifica como uma nação oceânica. Surpreende, portanto, que gestores públicos, empresários e parte considerável da população ainda pareçam viver de costas para o mar. É o paradoxo da primazia do planalto sobre o litoral. O mais completo levantamento já realizado sobre a biodiversidade marinha-costeira brasileira e os seus serviços ecossistêmicos – benefícios proporcionados pela natureza que sustentam a vida no planeta – pretende contrapor essa realidade e contribuir para tirar o Oceano da invisibilidade. Sobram razões e dados para colocá-lo no centro da agenda climática, econômica, social e humana, despontando como peça primordial no tabuleiro da sustentabilidade global.
O Sumário para Tomadores de Decisão do “1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos” foi lançado hoje pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e pela Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano. O documento reúne informações objetivas e contundentes que demonstram o papel vital do patrimônio marinho-costeiro para o bem-estar humano, a geração de riqueza e a sociodiversidade nacional e apontam a degradação a que vem sendo submetido.
O texto contribui para o melhor conhecimento dos benefícios e desafios da conservação marinha-costeira no país, revelando a importância desse ambiente para além de uma visão puramente econômica e da dimensão estética e espiritual. Dirigido a lideranças e gestores públicos e privados e também ao cidadão comum, seu intuito é ressaltar a influência do Oceano no dia a dia da população brasileira e apoiar a tomada de decisão individual e coletiva embasando a proposição de novas atitudes, ações, instrumentos de gestão e políticas públicas em prol da zona marinha-costeira.
O Sumário traz as mensagens-chave e os resultados consolidados no Diagnóstico, elaborado por 53 especialistas acadêmicos e governamentais, 12 jovens pesquisadores e 26 representantes de povos indígenas e populações tradicionais do Brasil, em diálogo com atores do poder público e da sociedade
civil.
Interdependência e resiliência
A Amazônia Azul – como é chamada a área marinha brasileira com 5,7 milhões de km² – equivale a 2/3 do território continental e abriga alta biodiversidade em uma grande variedade de habitats. As atividades econômicas relacionadas ao Oceano e regiões costeiras respondem por 20% do PIB nacional e abrangem distintos setores – pesca, aquicultura, navegação, mineração e turismo são alguns exemplos –, o que denota seu potencial para gerar riquezas e desenvolvimento.
Ao chamar a atenção para a deterioração do Oceano e da zona costeira e o resultante prejuízo na qualidade de vida da população, o estudo evidencia para o público, seja ele morador ou não do litoral, a relação de interdependência com esse ambiente. “A prosperidade e a soberania do país e o bem- estar do povo brasileiro dependem direta e indiretamente do Oceano e dos benefícios que ele provê, como segurança alimentar, hídrica e energética, recursos minerais e biotecnológicos, proteção da linha de costa e regulação climática. Tal regulação torna a Terra habitável, produz parte do oxigênio que respiramos, atenua o efeito estufa e controla o regime de chuvas que sustenta a produção agrícola nacional”, diz o texto.Para Beatrice Padovani, professora de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco e uma das coordenadoras do Diagnóstico, a biodiversidade marinha-costeira e seu imenso patrimônio despontam como a nossa resiliência diante da crise socioambiental que o país e o mundo enfrentam.
“Milhões de pessoas vivem e tiram seu sustento do Oceano e da zona costeira, daí a importância de fazermos boas escolhas e a hora de agir é agora”. Alexander Turra, professor da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano na Universidade de São Paulo e um dos coordenadores do Diagnóstico alerta para o fato de estarmos comprometendo a capacidade do Oceano em contribuir com a sociedade. “A tendência de perda da biodiversidade e dos benefícios providos pela natureza é alarmante, mas temos todos os elementos para reverter esse cenário”.
Ameaças
O Diagnóstico mostra que as alterações na zona marinha-costeira são diversas e complexas, com efeitos sinérgicos e cumulativos entrelaçados a políticas públicas e atividades humanas. Entre as principais causas da perda da biodiversidade marinha-costeira no país – e dos consequentes prejuízos no fornecimento de serviços ecossistêmicos – estão: ocupação desordenada e mudanças no uso do solo que danificam e suprimem áreas naturais (como aterramento de manguezais e supressão de áreas de restinga), ocasionando estreitamento da costa e perda de habitat de inúmeras espécies; poluição (plástico, poluentes industriais e excesso de nutrientes derivados de fertilizantes agrícolas e de esgotos); sobre-exploração de recursos e má gestão da pesca (que acarretam aumento do número de espécies ameaçadas de extinção, colapso de estoques pesqueiros e insegurança alimentar); introdução de espécies exóticas invasoras e as mudanças climáticas.
Além de explanar a magnitude do problema e evocar o senso de urgência, o documento apresenta oportunidades para a promoção de um Oceano próspero, efetivamente protegido e usado de forma mais justa, equitativa e ambientalmente sustentável. Cristiana Seixas, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas e também uma das coordenadoras do Diagnóstico, acredita que é possível frear a degradação e, em algumas partes, até revertê-la por meio de uma ação rápida e articulada em todas as esferas e níveis. “É necessário construir um arranjo de governança que interrompa a tendência de comprometimento da saúde dos ecossistemas marinhos e costeiros”, reforça Turra.
Governança
Os autores consideram que houve avanços nas últimas décadas, com um maior engajamento da sociedade e sobretudo de jovens, mas os esforços ainda são tímidos e difusos. Exemplos esparsos de iniciativas de conservação e enfrentamento das ameaças à zona marinha-costeira no Brasil precisam ganhar escala e ser replicados em outras regiões. Esse é um dos desafios que o estudo quer impulsionar, colaborando para um processo de governança que permita a elaboração e, principalmente, a implementação de políticas públicas coesas, coordenadas em nível federal e articuladas com estados e municípios.
A boa governança do Oceano e do litoral é multinível e multissetorial. “Depende do engajamento e da corresponsabilidade de diversos atores sociais que atuam em diferentes níveis da organização sociopolítica do país. Diversidade de setores, etnias, gêneros e de gerações são elementos importantes”, diz o texto. Seixas explica que, para passar de um arcabouço fragmentado a uma governança integrada, é necessário que haja mudanças estruturais tanto políticas como institucionais: “precisamos deixar o pensamento reducionista e setorizado e incutir a lógica sistêmica na mente de todos os tomadores de decisão”. Na mesma linha, Turra analisa que falta uma política de estado alinhada com controle social e que considere o fortalecimento dos povos do mar, que são constituídos por múltiplas identidades e inúmeros modos de vida e práticas culturais.
Cultura oceânica
O estudo endossa a promoção do conceito da Cultura Oceânica, que é um movimento mundial que busca disseminar a influência do Oceano na vida das pessoas e o impacto da ação humana sobre ele, incentivando a troca de conhecimentos e a reconexão com o mar.
Segundo o documento, “tal movimento criará uma sociedade engajada capaz de qualificar a forma como o Brasil construirá o Oceano do futuro, fortalecendo seus ativos para o desenvolvimento socioeconômico sustentável do país”. Os coordenadores indicam a necessidade da democratização do acesso a essa agenda, o que passa pela inserção do tema em distintos canais, em especial escolas e meios de comunicação. “É preciso fazer parcerias com o setor público, o privado e o terceiro setor para utilizar todos os canais possíveis, investindo em marketing ambiental para sensibilização através das artes, e em iniciativas de formação principalmente para os jovens”, recomenda Seixas.
Neste sentido, iniciativas multilaterais como a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030) e do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) n° 14 “Vida na Água” – que busca conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos – no âmbito da Agenda 2030, ambos estabelecidos pela ONU, são referenciais que ajudam a pautar o tema e a direcionar ações nacionais. “O Ministério do Meio Ambiente está atuante rumo a esses objetivos, mas temos que lidar com um cenário de impactos múltiplos e decisões que contrariam essas metas. Precisamos evoluir para o diálogo e construção conjuntas”, pontua Padovani.
Empresas como aliadas
Apostando na enorme capacidade da iniciativa privada de acelerar mudanças e mobilizar o debate, o Diagnóstico enfatiza o papel crucial desse setor na integração entre desenvolvimento e conservação, a partir de investimentos em ciência e ações sustentáveis. “O envolvimento corporativo em processos de planejamento espacial marinho pode evitar conflitos socioambientais e apontar nichos e oportunidades ainda pouco explorados – como recursos medicinais, bioquímicos e genéticos e o reservatório de carbonato da plataforma continental brasileira”, detalha o documento.
Na percepção dos autores, boa parte do empresariado brasileiro vê o oceano de forma limitada e pragmática – acima de tudo como fonte de recursos – e considera a conservação como obstáculo ao desenvolvimento. “O setor privado ainda não despertou para a importância do tema como elemento central de políticas internas de sustentabilidade”, afirma Turra. Padovani conta que isso vem mudando no cenário internacional, onde já desponta uma visão da conservação como parte do negócio e não um preço a se pagar por fora. “Precisamos construir essa compreensão de que os bens e serviços da natureza, dos quais dependemos, por sua vez dependem da manutenção de uma rede de funcionamento natural e autorregulada”, argumenta.
Mudanças climáticas
O Diagnóstico reitera a relação intrínseca entre Oceano e clima. Se, por um lado, o Oceano e a zona costeira atuam como amortecedores contra as mudanças climáticas – sequestrando e estocando carbono e atenuando eventos extremos –, por outro as alterações do clima contribuem para a elevação do nível médio do mar, com ressacas de maior alcance, acidificação e aumento da temperatura da água causando impactos sobre a biodiversidade, os serviços ecossistêmicos e o bem-estar humano.
Faltando um mês para o fim do ano mais quente dos últimos 125 mil anos, marcado por temperaturas marítimas recorde, e a uma semana da 28ª Conferência do Clima (Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima/COP28) em Dubai, era de se esperar que o ecossistema marinho e as políticas a ele relacionadas ganhassem mais espaço nas conversas e que países-membros da ONU incluíssem políticas efetivas para o Oceano em seus planos de combate às mudanças climáticas. “Embora haverá um ou outro evento na agenda oficial da COP 28 que discutirá o potencial do Oceano para mitigar e se adaptar às mudanças climáticas e aos seus efeitos, por exemplo, por meio de novas fontes de energia, eu vejo essas discussões ainda muito longe dos principais debates e negociações propostas. Certamente o tema Oceano deveria ter mais visibilidade dado sua importância”, desabafa Seixas.
Conhecimentos indígenas e tradicionais
O estudo enaltece a complementaridade dos diferentes saberes e salienta que um Oceano sustentável depende da aplicação dos sistemas de conhecimento científico e tradicionais. “Em meio à crise ambiental mundial percebemos que nossa civilização está errando em vários aspectos. Nós perdemos o contato com o mundo natural e precisamos reaprender o respeito à natureza com aqueles que ainda detêm essa sabedoria em sua cultura e em suas práticas. Povos indígenas e comunidades tradicionais são direta e imediatamente afetados por impactos de degradação ambiental e por isso fazem parte da solução”, alerta Padovani.