O direito constitucional dos índios às suas formas de vida foi um dos pontos de ênfase da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha na sessão do Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) realizada no dia 04 de abril. Manuela Carneiro da Cunha (USP/Universidade de Chicago), uma das coordenadoras do relatório temático da BPBES “Contribuição dos Povos Indígenas e Comunidades Locais Tradicionais para a Biodiversidade Brasileira”, juntamente com Cristina Adams (EACH/USP). Na palestra intitulada ‘A questão indígena no Brasil: impasses e perspectivas de futuro’, a professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e emérita da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, apontou fatores que ameaçam essas populações, especialmente no que diz respeito à demarcação e aos usos das reservas indígenas. Ela destacou a importância de reconhecer a contribuição dos índios para a biodiversidade brasileira, que constitui um ativo do país no cenário internacional. “Quem conhece os recursos silvestres são os povos indígenas e tradicionais, mas esse conhecimento está sendo desprezado. É preciso uma nova política, que aprecie e valorize isso”, declarou. Iniciativa da Diretoria do IOC, o Núcleo de Estudos Avançados é coordenado pelo pesquisador emérito Renato Cordeiro e por Maria de Lourdes Aguiar [confira as edições anteriores].
Conflitos pela terra
Presidente da Sociedade Brasileira de Antropologia (ABA) entre 1986 e 1988, a pesquisadora participou da mobilização para inclusão dos direitos dos índios na Constituição de 1988 e foi autora do livro ‘Os direitos do índio: ensaios e documentos’, considerado como principal referência para a redação do capítulo dedicado ao tema. Na palestra, Manuela lembrou que o direito das populações indígenas a posse de terras foi alvo de regulamentações no Brasil desde os tempos coloniais e esteve presente em todas as constituições republicanas a partir de 1934. Segundo ela, a mudança de paradigma da carta cidadã consistiu no reconhecimento, pela primeira vez, das formas de viver dos índios, incluindo organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, com consequente reconhecimento da posse das terras necessárias para sua reprodução física e cultural. “Com a Constituição de 1988, deixou de ser incumbência do Estado tornar os índios iguais ao brasileiro médio – que, aliás, não existe. A ideia de assimilação, que anteriormente era defendida como objetivo, foi superada”, apontou a antropóloga, acrescentando que o discurso em defesa da assimilação foi frequentemente usado com o interesse de liberar reservas indígenas. “Isso induz ao seguinte raciocínio: se os índios são iguais aos demais cidadãos, por que eles têm direito diferenciado a posse de terras?”, ponderou. A professora ressaltou que o tema é historicamente marcado por conflitos, uma vez que a criação de reservas indígenas impacta em interesses em agricultura, pecuária e mineração. Segundo ela, em 2017, havia 33 projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional contrários aos direitos indígenas, a maioria relacionada à posse de terras. Atualmente, dados do Instituto Socioambiental apontam que mais de 650 mil índios vivem em 722 terras indígenas no Brasil, em diferentes condições de demarcação. Deste conjunto, 474 são reservas homologadas pela União. “Existem muitas áreas já seguras, mas ainda há muitas por demarcar”, avaliou Manuela.
Considerando esse cenário, a antropóloga comentou a medida provisória 870/19, editada no dia 1º de janeiro, que transferiu a responsabilidade pelo processo de identificação, delimitação, demarcação e registro de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “Já foram impetradas ações de inconstitucionalidade contra essa medida provisória, que é um contrassenso e um conflito de interesses”, opinou. A professora também questionou a proposta de transferir parte do atendimento de saúde indígena da União para estados e municípios, considerando a necessidade de oferta de serviços adequados aos modos de vida desses povos e os conflitos que frequentemente existem entre os índios e as populações locais. Manuela alertou ainda para riscos na possibilidade de autorização da extração de minério em terras indígenas. “Esse debate ocorreu durante a constituinte, mas a proibição da mineração foi defendida tanto pelos indigenistas quanto pelos geólogos, que apontaram a importância de manter reservas minerais estratégicas protegidas”, contou. A antropóloga acentuou que, enquanto possíveis mudanças na legislação seguem em discussão, há necessidade de proteção das reservas indígenas contra garimpeiros ilegais e invasores – uma ameaça especialmente relevante para os povos isolados. De acordo com a professora, 28 povos não contatados são reconhecidos oficialmente pela Funai, mas estudos indicam que pode haver cerca de 50 tribos nessas condições. “Entre os povos isolados, há muitos que tiveram o primeiro contato e fugiram. Eles não têm interesse em ser assimilados pela nossa sociedade. É preciso preservá-los do contato desastroso que ocorreu no passado, quando a transmissão de doenças e os conflitos dizimaram populações”, afirmou.
Alternativas possíveis
Desde 2015, a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – iniciativa que nasceu a partir de um grupo de trabalho criado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – reúne cientistas que buscam sintetizar o conhecimento disponível sobre o papel da biodiversidade para o bem-estar humano e seu potencial para o país. Membro do grupo, Manuela é uma das coordenadoras do levantamento sobre a contribuição dos povos indígenas e comunidade locais tradicionais, que conta com 80 colaboradores e deve ter resultados divulgados até o fim do ano. “O objetivo do nosso trabalho é apresentar um levantamento sobre a contribuição dos povos indígenas e tradicionais à biodiversidade e aos serviços ecossistêmicos para embasar os tomadores de decisão no desenvolvimento de políticas públicas adequadas, que respeitem os modos de vida dessas populações”, sintetizou.
De acordo com a antropóloga, além de diversidade social, os povos indígenas são apreciadores, geradores e colecionadores da biodiversidade – o que está expresso em sua atividade agrícola, com papel importante na domesticação de plantas. Enquanto a agricultura moderna usualmente visa uma colheita homogênea baseada em variedades de alta produtividade, os indígenas valorizam a diversidade em suas plantações. “Entre os índios, a domesticação das plantas não levou à seleção, mas sim à coleção. Os Kaiapós cultivam 50 variedades de batata-doce. Os Kraós possuem 45 tipos de feijões e favas. As tribos às margens do Rio Negro têm mais de cem variedades de mandioca”, citou. Além de conservar a diversidade, os índios contribuem para expandi-la. Os Sateré-Mawés, primeiros domesticadores do guaraná, expressam bem essa característica: renovam suas plantações a cada três anos, buscando novas variedades na floresta. “O conhecimento tradicional não é apenas repassado, mas fruto da observação e da experimentação”, pontuou Manuela. Considerando os riscos das mudanças climáticas, que ameaçam a agricultura tanto pelas condições extremas como pela expansão de pragas agrícolas, a professora ressaltou que a preservação da biodiversidade é cada vez mais valiosa. “O maior exemplo do risco da falta de diversidade foi a fome das batatas na Irlanda, em 1845, quando uma praga acabou com todas as plantações. Nos Andes, onde a batata foi domesticada, há 4.500 variedades do tubérculo, mas somente duas ou três foram levadas para a Europa e não havia nenhuma capaz de resistir”, comentou. O conhecimento dos povos indígenas sobre os recursos silvestres e sua contribuição para a preservação ambiental também foram destacados. Segundo Manuela, um levantamento realizado entre os Yanomamis identificou nomes e usos de mais de 600 espécies de plantas. “Os povos caçadores e coletores conhecem a diversidade da floresta, e mesmo os índios mais sedentários recorrem à mata em busca de recursos silvestres. Há um enorme conhecimento preservado nessas populações, que é continuamente enriquecido”, disse ela. As terras indígenas constituem ainda um escudo contra o desmatamento. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), até 2013, enquanto 22,8% da floresta amazônica brasileira foram desmatados, o percentual nas áreas indígenas ficou em apenas 1,9%.
Debate
Os participantes do debate realizado após a palestra apontaram a necessidade de chamar atenção para os problemas enfrentados pelos povos indígenas. Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados do IOC, o pesquisador Renato Cordeiro destacou a importância do engajamento da comunidade científica no tema. “Acho fundamental que a comunidade científica tome conhecimento e se envolva com a problemática da população indígena. Particularmente no IOC, essas questões são de interesse tendo em vista que os índios sofrem com doenças infecciosas”, afirmou. O diretor do IOC, José Paulo Gagliardi Leite, apresentou um questionamento sobre o projeto de instalação da linha de transmissão de energia que visa conectar o estado de Roraima ao sistema elétrico nacional atravessando terras dos índios Waimiri-Atroaris.
A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e integrante do grupo de trabalho de saúde indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) Ana Lúcia Pontes ponderou sobre as diferenças nos debate das questões indígenas durante a assembléia constituinte e na atual legislatura. Já a pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ana Paula da Silva indagou sobre a avaliação de entidades internacionais em relação ao atual cenário brasileiro. A crescente participação dos índios nos debates dos temas de seu interesse foi um ponto destacado por Manuela. “Na época da Assembléia Constituinte, existia a União das Nações Indígenas (UNI), mas esse movimento ainda era incipiente. Hoje, a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) é muito ativa, e a eleição da primeira mulher indígena como deputada federal também é muito significativa. Não cabe mais aos indigenistas falar pelos índios, porque eles próprios estão ocupando seu lugar de fala. O que eles precisam é de apoiadores e de estudos que possam fornecer informações para o debate”, ponderou. Em resposta às perguntas, a antropóloga lembrou o último relatório divulgado no ano passado pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) que apontou como urgente o enfrentamento das questões indígenas no Brasil. Ela mencionou ainda a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tribais. “A convenção determina que os índios devem ser consultados sobre atividades em suas terras. Os Waimiri-Atroaris já disseram não serem contra a obra de instalação da linha de transmissão de energia para Roraima, mas desejam ser consultados”, pontuou.
Reportagem: Maíra Menezes (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)
Edição: Raquel Aguiar
11/04/2019