São Paulo, 6 de fevereiro de 2019 – Em meio a várias ações controversas para o afrouxamento do uso de agrotóxicos no país, a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e a Rede Brasileira de Interações Planta-Polinizador (REBIPP) lançam o “Primeiro Relatório Temático sobre Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil” e seu respectivo Sumário para Tomadores de Decisão – com os principais destaques do Relatório em linguagem não acadêmica. O documento evidencia a alta diversidade de polinizadores além de alertar para as ameaças aos polinizadores provocadas pela redução de florestas e uso de agrotóxicos. Em 2018, as culturas agrícolas dependentes da polinização responderam por US$12 bi (R$ 43 bi). Cerca de 80% desta quantia está associada a quatro cultivos de grande importância agrícola – soja, café, laranja e maçã.
“A melhor forma de defender os verdadeiros interesses públicos é produzir boas sínteses do conhecimento científico apresentadas em linguagem acessível aos leigos e com argumentos relevantes, tomando em conta as grandes questões sociais e econômicas da sociedade e em especial a relevância para o dia-a-dia de cada cidadão”, afirma Braulio Dias sobre o sumário para tomadores de decisão. Dias é professor da UnB e Ex-Secretário Executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica.
Para o professor Carlos Joly, coordenador da BPBES, a parceria entre a Plataforma Brasileira e REBIPP permitiu a reproduzir no país um diagnóstico aos moldes Assessment Report on Pollinators, Pollination and Food Production elaborado pela Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) da ONU, em 2016.
“Este relatório traz dados e informações regionais baseados nos conhecimentos científicos e tradicional sobre os polinizadores silvestres e sua importância para as plantas cultivadas em nosso país. Isto o torna relevante para orientar políticas públicas especificas voltadas para uso e conservação do serviço de polinização em sistemas naturais e agrícolas”, enfatiza Blandina Viana, professora da UFBA e uma das autoras brasileiras da Avaliação Temática Global sobre Polinizadores, Polinização e Produção de Alimentos da IPBES.
No caso da avaliação global da IPBES, o documento foi posteriormente encampado pelos países membros da Convenção da Diversidade Biológica, visando incentivar países e organizações a criarem e implementarem políticas públicas para proteção de polinizadores, como já ocorreu na Holanda e França.
A versão brasileira reuniu, durante um ano e meio, 12 pesquisadores de todo o país, para preparar o diagnóstico que envolveu a levantamento de mais de 400 publicações e que foi posteriormente submetido a 11 revisores externos. “O documento nacional foi estruturado de modo a subsidiar futuros programas de integração entre os vários setores da sociedade civil e esperamos que o Estado se sensibilize com esta questão”, afirma Vera Imperatriz, da Universidade de São Paulo, que coordenou o diagnóstico global da IPBES.
A ocasião para o lançamento do relatório é oportuna, segundo Joly, pois coincide com a discussão da regulamentação e liberação de novos agrotóxicos. “Um país que tem uma dependência econômica tão alta de polinizadores, deve avaliar com muita cautela, e seguindo os princípios da precaução formalizados na ECO 92, a utilização de substâncias que colocam em risco o enorme benefício que estes animais nos trazem. Os polinizadores são de vital importância não só para nossas exportações como para produção de alimentos essenciais para a qualidade de vida dos brasileiros”, argumenta o coordenador da BPBES.
Alta diversidade de polinizadores é uma oportunidade
A polinização é considerada um serviço ecossistêmico, ou seja, um benefício decorrente da integridade da natureza para sustentar a vida no planeta, tais como água limpa, ar puro, alimentos, regulação do clima, prevenção de acidentes, lazer e até bens culturais e valores emocionais. Especificamente a polinização por animais atua na manutenção e a variabilidade genética de populações de plantas, fornece frutos, sementes, mel e derivados, além de envolver um conjunto de conhecimentos tradicionais, sobretudo, associado ao manejo.
Das 191 culturas agrícolas utilizadas para a produção de alimentos no país que se tem conhecimento sobre o processo de polinização, 114 (60%) são visitadas por polinizadores. O diagnóstico analisou ainda o grau de dependência dos polinizadores para 91 culturas agrícolas e constatou que para 76% (69) a ação de polinizadores aumenta a quantidade e/ou a qualidade da produção agrícola em algum nível.
Em escala mundial, 75% dos principais cultivos necessita da polinização e entre 78 e 94% da flora silvestre também depende de polinização por animais, conforme constatado no relatório global de 2016.
O Brasil abriga uma grande riqueza de animais que proveem o serviço ecossistêmico de polinização. A lista de visitantes das culturas agrícolas supera 600 animais, dos quais cerca de 250 com potencial de polinizador – e estima-se que este número seja maior. As abelhas predominam como polinizadores consagrados encabeçando a lista, com 66% das espécies. Besouros, borboletas, mariposas, aves, vespas, moscas, morcegos e percevejos enriquecem a lista de agentes polinizadores.
Esta diversidade de polinizadores é fundamental para a efetividade da polinização, afirma o relatório. Mesmo no grupo de abelhas, a efetividade da polinização é bem particular. Ainda que haja flores polinizadas pelas abelhas sociais, como Apis melífera (a famosa produtora de mel, comumente conhecida como abelha-europeia, africana ou doméstica) e abelhas sem ferrão (como a jataí e mandaçaia), existem flores, por exemplo, que precisam de vibração para liberar o pólen, ou de abelhas maiores (como as solitárias mamangavas) para alcançá-lo e garantir a transferência do material genético. Há ainda abelhas que visitam as flores apenas no fim do dia.
Por esta razão, nem sempre colocar colmeias de Apis mellifera ou de abelhas sem ferrão nas plantações a fim de incrementar a efetividade da fertilização do cultivo pode ser suficiente para garantir a polinização adequada e de qualidade dos cultivos. O melhor é ainda ter fragmentos de vegetação nativa no entorno das lavouras para diversificar os tipos de polinizadores e a oferta de recursos durante o ano.
O manejo de polinizadores para aumentar a produção de alimentos ainda é uma oportunidade pouco explorada. No caso das abelhas, o país possui uma grande diversidade espécies sem ferrão que, além de produzirem méis de qualidade e de alto valor agregado, proveem a polinização de diversos cultivos agrícolas. Segundo o relatório, apenas 16 espécies são manejadas, sendo 12 de abelhas nativas sem ferrão. A abelha europeia ainda é o polinizador predileto, sobretudo para a produção de mel e outros produtos apícolas.
Pequenos produtores agrícolas, meliponicultores (criadores de abelhas nativas sem ferrão para produção de mel) e alguns povos indígenas e comunidades tradicionais têm conhecimento acerca da biologia e do manejo de abelhas sem ferrão e fazem uso direto de seus produtos. Esse grupo de abelhas também integra crenças e rituais em algumas culturas e seus produtos são utilizados na medicina alternativa. Desta forma, o conhecimento tradicional associado às práticas culturais de produção de mel tem potencial econômico e para prospecção de espécies nativas para manejo.
Diferença na prateleira: o valor econômico do serviço ecossistêmico
Segundo o diagnóstico global sobre polinizadores, polinização e produção de alimentos da IPBES, o valor anual do serviço ecossistêmico dos polinizadores no mundo foi estimado entre US$ 235 bilhões e US$ 577 bilhões. No Brasil, calcula-se que a polinização relacionada à produção agrícola tem um valor anual de US$ 12 bilhões ou R$43 bi. Os dados do relatório confirma esta estimativa.
Quatro cultivos de grande importância agrícola são detentores dos maiores valores anuais de produção – soja, café, laranja e maçã –, que respondem por 80% desta quantia.
Para chegar a este valor, os pesquisadores da REBIPP se basearam em 67 plantas e consideram a dependência que o cultivo tem em relação aos polinizadores para a produção do fruto/semente e multiplicaram pela produção primária anual deste cultivo. “o indicador de dependência é calculado mediante os dados disponíveis de polinização de flores que ficam expostas a polinizadores em contraste com flores que ficam ensacadas e isoladas de polinizadores e analisa-se a produção”, explica Marina Wolowski, professora da Universidade de Alfenas e coordenadora do diagnóstico. Esta dependência pode variar gradativamente de ausente, para aquelas plantas que possuem alta capacidade de se autopolinizar ou produzir frutos sem polinizadores, a pouca, modesta, alta ou essencial. A importância dos polinizadores para a produção agrícola varia entre os diferentes cultivos. “A soja não é muito dependente da polinização, porém, tem um grande peso no valor total calculado dada a produção anual de grãos”, explica Wolowski.
Múltiplas ameaças
De acordo com o Relatório de polinização da BPBES e REBIPP, são múltiplas as causas que ameaçam o serviço ecossistêmico de polinização: perda de habitat, mudanças climáticas, poluição ambiental, agrotóxicos, espécies invasoras, doenças e patógenos. Essas vulnerabilidades colocam em risco a produção de alimentos e a conservação da biodiversidade
A substituição de áreas naturais por zonas agrícolas ou urbanas diminuem a oferta de locais para construção de ninhos e restringem os recursos alimentares utilizados por polinizadores. Mudanças climáticas atuam na alteração da distribuição das espécies e afetam as florações e, consequentemente as interações entre espécies, provocando efeitos imprevisíveis.
A presença de polinizadores de outras regiões – como no caso da abelha Apis melífera – circunscreve uma potencial competição por recursos florais com as espécies nativas, além de expor as populações nativas a possíveis vetores de pragas e patógenos.
Quando se trata da relação entre os efeitos de organismos transgênicos sobre polinizadores nativos, o diagnóstico constatou a ausência de estudos que permitam delinear uma conclusão acerca do tema.
A urgência de uma política de proteção para polinizadores
Dentre os poluentes ambientais, o que mais preocupa é o uso de agrotóxicos. Os efeitos das doses destas substâncias variam muito, podendo levar à morte ou atuar como repelentes dos polinizadores, ressalta o relatório. Efeitos tóxicos subletais, como desorientação do voo, perda da habilidade dos polinizadores para encontrar recursos florais, redução na produção de prole, entre outros, já estão documentados principalmente para a abelha europeia. O impacto dos efeitos dos agrotóxicos nas espécies nativas é uma lacuna que precisa urgentemente ser estudada, advertem as coordenadoras do diagnóstico.
As recentes ações que tornam menos rígidas o uso dos agrotóxicos preocupam os pesquisadores. “O atual sistema de produção de alimentos mundial depende de insumos químicos, seja adubo, inseticida, herbicida, porque o mundo precisa de uma grande quantidade de alimentos. Mas já existem estudos extremamente avançados apontando moléculas que não são tão maléficas ao meio ambiente e com maior efetividade que podem ser apropriados em uma transição para uma produção mais sustentável”, explica Agostini. Para a pesquisadora outro ponto que preocupa é a ausência da mitigação dos efeitos do uso destas substâncias.
A falta de evidências sobre os efeitos dos agrotóxicos para polinizadores e saúde humana parece não ter importância na liberação destas substâncias, ressalta Wolowski, se referindo à recente registro de 28 agrotóxicos e princípios ativos pelo Ministério da Agricultura no último dia 10 de janeiro. Entre eles um aditivo inédito no país, o sulfoxaflor, que já causa polêmica nos Estados Unidos por estar associado ao extermínio de abelhas.
“Infelizmente o Brasil atualmente caminha em sentido contrário ao da comunidade internacional ao persistir no uso de agrotóxicos já banidos na maioria dos outros países e ao propor flexibilizar a Lei de Agrotóxicos. Transferir a responsabilidade de aprovação de agrotóxicos apenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento certamente não vai beneficiar o meio ambiente, os polinizadores e a saúde de agricultores e consumidores”, explica Dias. Para o ex-secretário da CDB estamos mais uma vez diante de um conflito entre os interesses privados e os interesses coletivos.
“Se não tivermos esta proteção, os produtores terão que investir financeiramente em um serviço que é oferecido gratuitamente pela natureza” Kayna Agostini, coordenadora do relatório
A campanha mundial de incentivo à adoção de políticas públicas em prol da conservação dos polinizadores – Coalition of the Willing on Pollinators – à qual algumas dezenas de governos já aderiram desde 2016, ainda não conta com a participação do Brasil. Em outubro do mesmo ano, cerca de 150 pesquisadores enviaram a “Carta de Catalão” ao Ministério do Meio Ambiente propondo a elaboração e aprovação de uma política nacional de valorização e proteção dos polinizadores. Entretanto, a iniciativa ainda não teve eco dentro do governo.
“É fundamental a criação de leis específicas que protejam polinizadores para que este serviço ecossistêmico continue rendendo valor monetário ao agricultor. Se não tivermos esta proteção, os produtores terão que investir financeiramente em um serviço que é oferecido gratuitamente pela natureza” conclui Agostini.
“O relatório de polinização da BPBES e REBIPP, juntamente com outro importante relatório produzido pelo CGEE em 2017, poderão ter um grande impacto no Brasil e motivar governantes, legisladores e lideranças empresariais a apoiar a aprovação de uma legislação brasileira para promover a conservação e o uso sustentável dos polinizadores com benefícios para a nutrição dos consumidores, produtores de alimentos e o meio ambiente”, enseja Dias.
Essas informações são muito úteis para orientar a elaboração de politicas públicas nacionais para conservação e manejo sustentado dos polinizadores, sustenta Viana. “Por exemplo, políticas que visam apoiar os sistemas agrícolas diversificados, que são práticas que ajudam a manter os polinizadores, pois proveem alimentos e abrigo; e que visam conservar e restaurar a ‘infraestrutura verde’ – uma rede de habitats entre as quais os polinizadores podem se mover – em paisagens agrícolas; bem como, políticas de fomento à criação de redes de pesquisa e extensão transdisciplinares, projetos de ciência cidadã, e comunicação pública do conhecimento cientifico nessa área”, exemplifica Viana.
Para isto, frisa o relatório, é necessário que “uma política pública que trate da polinização e dos polinizadores de forma ampliada, ancorada na conservação da biodiversidade, pode ser favorecida por uma construção coletiva que integre agendas e ações transversais de diversas áreas – como meio ambiente, agricultura, ciência, tecnologia, informação e comunicação – envolvendo agentes públicos e privados”.
Por fim, Joly, coordenador da BPBES, deixa a indagação, “não seria este o momento adequado para usarmos o conhecimento sintetizado neste trabalho, para estabelecermos uma Política Nacional de Polinizadores?”.